TRANSTORNOS DISRUPTIVOS NA ADOLESCÊNCIA: SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO PSICOSSOCIAL SOB A ÓTICA WINNICOTTIANA
SANCHES, Carlos Eduardo¹
RESUMO
Este artigo apresenta uma reflexão psicanalítica, fundamentada no pensamento de Donald Woods Winnicott, acerca dos transtornos disruptivos manifestos na adolescência, fenômenos de grande impacto para a Saúde Mental infanto-juvenil. A adolescência é aqui compreendida como uma fase crucial do amadurecimento, permeada por intensas transformações psicossociais e pela reedição de vivências primitivas, na qual comportamentos disruptivos podem emergir como expressões de sofrimento psíquico e de falhas na provisão ambiental. Exploramos conceitos winnicottianos basilares, tais como a tendência antissocial, a privação, o ambiente suficientemente bom, o verdadeiro e o falso self, e a delinquência como um sinal de esperança, para elucidar a etiologia e a dinâmica subjacente a esses transtornos. Destaca-se a relevância de uma escuta clínica apurada e de um manejo terapêutico alinhado aos princípios da Atenção Psicossocial, que vise o resgate da continuidade de ser e o restabelecimento da confiança no ambiente, proporcionando ao adolescente a oportunidade de reencontrar um espaço para a expressão da criatividade e da espontaneidade. Enfatiza-se, ademais, a imperatividade de uma abordagem que reconheça a comunicação implícita no ato disruptivo, buscando alcançar o gesto espontâneo e a necessidade de reparação que nele se inscreve.
Palavras-chave: Transtornos Disruptivos, Adolescência, Psicanálise Winnicottiana, Tendência Antissocial, Ambiente Suficientemente Bom, Privação, Falso Self, Saúde Mental, Atenção Psicossocial.
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¹ Bacharel em Administração pelo Centro Universitário de Santo André, Bacharel em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo. Especialista em Psicanálise Clínica e Ensino Lúdico.
1. INTRODUÇÃO
Os transtornos disruptivos na adolescência, que incluem diagnósticos como o Transtorno de Oposição Desafiante (TOD) e o Transtorno de Conduta (TC), conforme descritos em manuais como o DSM-5 (APA, 2014) e detalhados por Maniglia (s.d., p. 44-57), configuram um campo de considerável preocupação clínica e social, com implicações diretas para a Saúde Mental de jovens e suas famílias. Tais transtornos são caracterizados por “um padrão global de desobediência, do desafio e do comportamento hostil” no caso do TOD (Maniglia, s.d., p. 45) ou por “um padrão comportamental repetitivo e persistente no qual são violados direitos básicos de outras pessoas ou normas ou regras sociais relevantes e apropriadas para a idade” no TC (Maniglia, s.d., p. 50), gerando significativos prejuízos no funcionamento individual, familiar, social e acadêmico do jovem. A compreensão desses fenômenos, contudo, transcende a mera catalogação de sintomas quando abordada sob a perspectiva da psicanálise winnicottiana, oferecendo subsídios valiosos para uma Atenção Psicossocial mais humanizada e efetiva.
Donald Woods Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, legou-nos uma obra que ilumina a intrínseca relação entre o desenvolvimento emocional do indivíduo e a qualidade do ambiente que o cerca, desde os primórdios da vida. Para Winnicott, a saúde psíquica e a capacidade de viver criativamente dependem da provisão de um “ambiente suficientemente bom” (Winnicott, 1965b/1983), um ambiente que se adapte às necessidades do bebê, permitindo a emergência do self verdadeiro e a integração da personalidade. A adolescência, período de intensas transformações corporais, psíquicas e sociais, representa um momento de reativação de angústias primitivas e de teste da confiabilidade do ambiente. Nesse contexto, os comportamentos disruptivos podem ser entendidos não como uma falha intrínseca do adolescente, mas como uma comunicação, muitas vezes desesperada, de uma falha ambiental ocorrida em algum momento do seu desenvolvimento, uma privação (Winnicott, 1956/1984a). Esta perspectiva é fundamental para a Saúde Mental pública, pois desloca o foco de uma patologização individual para uma compreensão mais ampla das necessidades relacionais e ambientais dos jovens. Como salienta Winnicott (1967, citado por Horne, s.d.), a tendência antissocial está ligada ao ponto em que a criança é privada daquilo que teve satisfatoriamente e tenta retornar a esse estágio para recuperar a esperança e continuar seu desenvolvimento.
A “tendência antissocial”, conceito central na obra winnicottiana para a compreensão da delinquência e dos comportamentos disruptivos, é vista como uma manifestação de esperança (Winnicott, 1956/1984a; Winnicott, 1984b). O ato antissocial, seja ele um pequeno furto, uma mentira ou um ato de vandalismo, representa uma tentativa inconsciente do indivíduo de reencontrar um objeto ou um ambiente que foi perdido, mas que outrora foi experienciado como bom e confiável. É um apelo ao ambiente – familiar, escolar, e aos serviços de Atenção Psicossocial – para que este reconheça a sua falha e ofereça uma nova oportunidade de reparação e cuidado. Assim, o comportamento disruptivo, embora problemático e causador de sofrimento, carrega em si um potencial de comunicação e um pedido de ajuda que necessita ser decifrado e acolhido, e não meramente suprimido. Maniglia (s.d., p. 45) descreve que no TOD, crianças “discutem excessivamente com adultos, não aceitam responsabilidade por sua má conduta, incomodam deliberadamente os demais”, comportamentos que, sob a ótica winnicottiana, podem ser lidos como um teste constante da capacidade do ambiente de suportá-los e compreendê-los. Essa busca por um ambiente que suporte e reconheça a falha é um grito por Saúde Mental.
O presente artigo propõe-se a explorar os transtornos disruptivos na adolescência à luz do referencial teórico winnicottiano, buscando aprofundar a compreensão de suas raízes no desenvolvimento emocional primitivo e discutir as implicações dessa perspectiva para a prática clínica e para as estratégias de Atenção Psicossocial voltadas a adolescentes que apresentam tais manifestações. Serão abordados conceitos como a constituição do self, a importância do holding, a diferenciação entre privação e deprivação, e o papel do falso self como uma defesa frente a um ambiente não facilitador, elementos cruciais para uma leitura clínica que vá além da superfície do sintoma e contribua para a promoção da Saúde Mental integral. A negligência ou a incapacidade do ambiente em responder a esses apelos pode levar à cronificação do sofrimento e à intensificação dos comportamentos disruptivos, representando um desafio significativo para os sistemas de Saúde Mental e Atenção Psicossocial.
2. METODOLOGIA
Esta revisão clínica foi conduzida através de uma análise aprofundada da obra de Donald Woods Winnicott, com especial atenção aos seus escritos sobre a tendência antissocial, o desenvolvimento emocional primitivo, a delinquência e o papel do ambiente. Foram consultadas as obras originais e traduções consagradas (e.g., Winnicott, 1958/2000; Winnicott, 1965b/1983; Winnicott, 1971/1975; Winnicott, 1984a), bem como artigos e livros de comentadores e estudiosos da psicanálise winnicottiana que abordam a temática da adolescência, dos transtornos de comportamento e suas implicações para a Saúde Mental (Horne, s.d.; Dias, 2000; Phillips, 1988).
Paralelamente, foram utilizados como referência os critérios diagnósticos e as descrições clínicas dos transtornos disruptivos, como o Transtorno de Oposição Desafiante e o Transtorno de Conduta, conforme apresentados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) (APA, 2014) e no material didático “Transtornos Psiquiátricos na Infância e Adolescência” de Maniglia (s.d.), disponibilizado no contexto da Pós-Graduação em Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Este último material foi particularmente útil para contextualizar as manifestações clínicas (Maniglia, s.d., p. 44-57), como a descrição de que os primeiros sintomas do TOD “podem surgir durante os anos de pré-escola e, raramente, mais tarde” (Maniglia, s.d., p. 44), e que o TC pode ser um desdobramento, especialmente “em indivíduos com transtorno da conduta com início na infância” (Maniglia, s.d., p. 44). Estas informações são cruciais para estabelecer um diálogo entre a nosografia psiquiátrica contemporânea e a profundidade da compreensão psicanalítica winnicottiana.
A metodologia empregada consistiu na articulação desses diferentes saberes, buscando tecer uma compreensão clínica dos transtornos disruptivos na adolescência que, partindo da descrição fenomenológica dos comportamentos, alcance a dinâmica psíquica subjacente, tal como concebida por Winnicott. A seleção dos textos priorizou aqueles que oferecessem subsídios para a compreensão da etiologia psíquica, da função comunicativa do sintoma disruptivo e das implicações para o manejo clínico na adolescência, com vistas a uma Atenção Psicossocial mais efetiva. A síntese dos dados foi realizada de forma narrativa, com o objetivo de apresentar as principais contribuições do referencial winnicottiano para a elucidação e o tratamento dessas complexas manifestações juvenis, que desafiam os sistemas de cuidado em Saúde Mental. A integração da perspectiva do desenvolvimento, conforme delineada por Maniglia (s.d.) ao discutir a variação dos sintomas com a idade, também foi considerada.
3. DISCUSSÃO: A PERSPECTIVA WINNICOTTIANA SOBRE OS TRANSTORNOS DISRUPTIVOS NA ADOLESCÊNCIA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
A compreensão winnicottiana dos transtornos disruptivos na adolescência se alicerça na sua teoria do desenvolvimento emocional primitivo. Para Winnicott, o bebê humano nasce em um estado de dependência absoluta, e seu desenvolvimento saudável rumo à independência relativa é intrinsecamente ligado à qualidade do cuidado ambiental, inicialmente provido pela “mãe suficientemente boa” (Winnicott, 1960/1983). Essa mãe, através de sua adaptação ativa e sensível às necessidades do bebê – o holding (sustentação), o handling (manejo) e a apresentação de objetos – permite que o bebê experiencie a ilusão de onipotência, fundamental para a constituição do seu self e para o desenvolvimento da capacidade de se relacionar com a realidade (Winnicott, 1971/1975). Falhas ambientais significativas nesse processo, como uma intrusão excessiva ou uma negligência das necessidades do bebê, podem ter consequências duradouras para a Saúde Mental, manifestando-se de forma proeminente na adolescência, quando as demandas por autonomia e identidade se intensificam. A Atenção Psicossocial deve, portanto, considerar esse histórico de desenvolvimento ao abordar o sofrimento do adolescente.
3.1. Privação, Deprivação e a Tendência Antissocial: Um Grito por Reconhecimento na Saúde Mental
Winnicott (1956/1984a) distingue crucialmente a privação da deprivação. A deprivação refere-se a uma ausência total de uma experiência boa fundamental, uma carência desde o início, o que pode levar a quadros psicóticos ou a dificuldades severas na constituição do self. A privação, por sua vez, implica que houve uma experiência de um ambiente suficientemente bom que, por algum motivo, foi perdida. É a partir da experiência de privação que surge a tendência antissocial, um conceito chave para entender os transtornos disruptivos. O adolescente que rouba, mente, destrói ou desafia de forma persistente – comportamentos descritos por Maniglia (s.d., p. 50-51) como característicos do Transtorno de Conduta, como “provocações, ameaças ou comportamento intimidador”, “iniciam brigas físicas com frequência”, ou “destruição deliberada de propriedade” – está, na visão winnicottiana, buscando inconscientemente algo que lhe foi tirado: um pedaço de cuidado, de confiabilidade, de reconhecimento que ele sentiu que lhe pertencia e que lhe foi subtraído (Winnicott, 1956/1984a; Horne, s.d.). A intensidade dessa busca pode ser proporcional à dor da perda original, impactando severamente sua Saúde Mental.
O ato antissocial é, paradoxalmente, um sinal de esperança: esperança de que o ambiente (seja ele a família, a escola ou os serviços de Atenção Psicossocial) perceba o seu apelo, suporte o seu comportamento “ruim” e, finalmente, reconheça a sua necessidade de reparação e a injustiça sofrida (Winnicott, 1984b). O jovem busca, através da sua conduta, encontrar um ambiente que seja forte o suficiente para sobreviver à sua destrutividade e que possa oferecer os limites e a continência que faltaram. Essa busca por um ambiente que suporte é um elemento crucial para a Saúde Mental do adolescente; sem ele, o sentimento de não existência ou de desintegração pode se agravar. Como aponta Maniglia (s.d., p. 45), no TOD, “os indivíduos que apresentam sintomas suficientes para atingir o limiar diagnóstico, mesmo que isso ocorra somente em casa, podem ter prejuízos significativos em seu funcionamento social”, indicando como o ambiente primário é central. A falha do ambiente em reconhecer esse apelo pode levar à “perda da esperança”, que Winnicott (1963/1983, p. 182) descreve como uma característica da criança privada que não está sendo antissocial no momento. A Atenção Psicossocial tem o papel de tentar reacender essa esperança.
3.2. O Verdadeiro Self, o Falso Self e a Quebra da Espontaneidade: Implicações para a Atenção Psicossocial
Quando o ambiente primitivo falha em reconhecer e espelhar os gestos espontâneos do bebê, este pode desenvolver um “falso self” como uma forma de proteção ao seu “verdadeiro self” e como um modo de se relacionar com um ambiente percebido como não confiável ou invasivo (Winnicott, 1960/1965b). O falso self é uma fachada de complacência ou, inversamente, de rebeldia reativa, que esconde a espontaneidade e a criatividade do verdadeiro self. Na adolescência, a luta pela autenticidade e pela expressão do verdadeiro self pode se intensificar. O comportamento disruptivo pode, em alguns casos, representar uma tentativa desesperada de romper com as amarras de um falso self, uma busca, ainda que desajeitada e destrutiva, por se sentir real e vivo (Winnicott, 1971/1975). A agressividade e o desafio podem ser manifestações da luta contra um sentimento de aniquilamento ou de não existência, decorrente da falha ambiental em reconhecer o ser do adolescente. O verdadeiro self, para Winnicott (1960/1965b, p. 148), “vem da vida dos tecidos corporais e do funcionamento do corpo, incluindo a ação do coração e a respiração (…) é pouco mais que a soma da vida sensório-motora”. Quando esta base não é sustentada, a Saúde Mental fica comprometida.
A Atenção Psicossocial, nesse contexto, deve se pautar na criação de espaços seguros e confiáveis onde o adolescente possa, gradualmente, arriscar-se a mostrar seu verdadeiro self, sem medo de retaliação ou de não reconhecimento. A predominância de um falso self é um fator de risco para a Saúde Mental, levando a sentimentos de vazio, futilidade e depressão (Maniglia, s.d., p. 36-43, discute a depressão, que pode ser uma comorbidade ou consequência). A rigidez do falso self impede o adolescente de usar o ambiente de forma criativa e de estabelecer relações genuínas. O profissional de Saúde Mental precisa estar atento para não reforçar o falso self, mas sim para criar condições para que o gesto espontâneo possa emergir e ser reconhecido como valioso.
3.3. Adolescência: A Necessidade de Ser, a Prova do Ambiente e o Papel da Rede de Atenção Psicossocial
A adolescência é, para Winnicott (1971b), um período de redescoberta do self, mas também de grande vulnerabilidade e turbulência, uma espécie de “doença normal” que a sociedade precisa suportar. O adolescente necessita de um ambiente que, ao mesmo tempo, lhe ofereça liberdade para explorar e experimentar, mas que também lhe forneça limites claros e uma presença confiável que “sobreviva” aos seus ataques e à sua ambivalência. Os comportamentos disruptivos podem ser entendidos como uma forma de colocar o ambiente à prova, de testar sua solidez e sua capacidade de oferecer um holding adequado às novas necessidades de um indivíduo que não é mais uma criança, mas também ainda não é um adulto (Winnicott, 1963/1994). Como Winnicott (1962/1965a, p. 80) afirma, “o adolescente está essencialmente isolado”, e é a partir dessa posição de isolamento que se inicia um novo tipo de relação com o externo.
A sociedade, a família e as instituições (como a escola e os serviços que compõem a rede de Atenção Psicossocial) são desafiadas a encontrar uma forma de conter o adolescente sem aniquilar sua vitalidade e sua busca por autonomia. A falha em prover essa continência pode agravar a tendência antissocial, levando o jovem a intensificar seus atos na tentativa de encontrar uma resposta do ambiente. Maniglia (s.d., p. 49) ressalta que o início do Transtorno de Conduta pode ocorrer desde os anos pré-escolares, mas frequentemente os sintomas significativos emergem “desde a segunda infância até a fase intermediária da adolescência”, um período onde a interação com o ambiente social mais amplo se intensifica. A resposta desse ambiente é crucial para a Saúde Mental do jovem. Uma rede de Atenção Psicossocial fortalecida e articulada pode oferecer o suporte necessário para que a família e a escola lidem com esses desafios, evitando a exclusão e a estigmatização do adolescente.
3.4. Implicações para a Prática Clínica Winnicottiana e a Atenção Psicossocial Integrada
A abordagem terapêutica winnicottiana para adolescentes com transtornos disruptivos se distancia de uma intervenção puramente comportamental ou punitiva, alinhando-se com os preceitos de uma Atenção Psicossocial que valoriza a singularidade, o território e o cuidado em liberdade. O foco reside na criação de um setting terapêutico que funcione como um novo ambiente suficientemente bom, um espaço de confiabilidade onde o adolescente possa se sentir seguro para expressar suas angústias, sua raiva e, fundamentalmente, suas necessidades não atendidas (Winnicott, 1971/1975; Horne, s.d.). O terapeuta winnicottiano, inserido ou em diálogo com a rede de Saúde Mental, busca:
- Sobreviver aos ataques e à destrutividade: Manter-se presente e não retaliar frente às provocações e aos comportamentos agressivos, demonstrando a capacidade do ambiente (terapêutico) de conter e metabolizar essas experiências. Esta “sobrevivência” do analista é crucial para que o objeto (analista) possa ser usado de forma real pelo paciente (Winnicott, 1969/1971). Esta postura é um modelo para outros cuidadores na rede de Atenção Psicossocial.
- Reconhecer e validar o gesto espontâneo: Estar atento e valorizar as manifestações do verdadeiro self, por mais incipientes que sejam, fomentando a criatividade e a espontaneidade. Isso pode envolver o uso de recursos lúdicos e criativos, caros à Atenção Psicossocial.
- Interpretar a comunicação no ato: Compreender o significado inconsciente do comportamento disruptivo como uma tentativa de comunicar uma experiência de privação e uma busca por reparação. A interpretação, no sentido winnicottiano, muitas vezes se dá mais pela via da experiência vivida na relação terapêutica do que por construções intelectuais formais. “O que importa é que o paciente sinta que o analista vê o assunto do seu ponto de vista” (Winnicott, 1962/1965b, p. 167).
- Oferecer holding e manejo: Prover uma presença constante, confiável e adaptada às necessidades do adolescente, ajudando-o a encontrar um sentido para suas experiências e a retomar a sua linha de continuidade de ser. Isso inclui o estabelecimento de limites claros, mas que sejam compreendidos como parte do cuidado e da proteção, e não como mera punição. Maniglia (s.d., p. 48) aponta que, no TOD, o diagnóstico diferencial com o Transtorno da Conduta é importante, pois os comportamentos do TOD “são de natureza menos grave (…) e não incluem agressão a pessoas ou a animais, destruição de propriedade ou um padrão de roubo ou de falsidade”, o que pode guiar a intensidade e o tipo de manejo necessário dentro da Saúde Mental.
- Trabalhar com a família e o contexto em rede: A Atenção Psicossocial preconiza um trabalho em rede. Quando possível e apropriado, é fundamental envolver os pais ou cuidadores no processo, auxiliando-os a compreender as necessidades emocionais do adolescente e a modificar aspectos do ambiente familiar que possam estar contribuindo para a manutenção dos comportamentos disruptivos. A articulação com a escola, conselhos tutelares, e outros serviços de Saúde Mental e assistência social também é vital para um cuidado integral e para a construção de um projeto terapêutico singular. Maniglia (s.d., p. 54) menciona fatores que potencializam os transtornos do comportamento disruptivo, como “desestruturação familiar” e “desajustes resultantes do isolamento social”, reforçando a necessidade dessa abordagem em rede.
O objetivo último não é apenas a eliminação do sintoma, mas a facilitação do processo de amadurecimento emocional, permitindo que o adolescente possa desenvolver a capacidade de se preocupar genuinamente com o outro (concern), de usar os objetos de forma criativa e de se sentir real e vivo em suas relações com o mundo (Winnicott, 1963/1982). Este é um objetivo central para a promoção da Saúde Mental a longo prazo e para a reintegração social efetiva, pilares da Atenção Psicossocial.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, a presente revisão clínica buscou demonstrar como a perspectiva psicanalítica de D.W. Winnicott oferece uma compreensão profunda e humanizada dos transtornos disruptivos na adolescência, transcendendo a descrição sintomática para alcançar as raízes do sofrimento psíquico no desenvolvimento emocional primitivo e na relação com o ambiente. Esta abordagem é de valor inestimável para o campo da Saúde Mental e para a prática da Atenção Psicossocial, pois resgata a dimensão da esperança e da comunicação no comportamento aparentemente caótico e destrutivo. A tendência antissocial, longe de ser vista apenas como uma patologia individual a ser corrigida, é compreendida como uma comunicação carregada de esperança, um apelo por reconhecimento e reparação de uma privação fundamental. O comportamento disruptivo emerge, assim, como uma tentativa, ainda que distorcida e dolorosa, de reencontrar um ambiente confiável e de restaurar a continuidade do ser, essencial para uma Saúde Mental estável.
Para o psicólogo clínico de orientação winnicottiana, e para todos os profissionais envolvidos na Atenção Psicossocial a adolescentes, o trabalho com jovens que manifestam tais transtornos implica a árdua, porém fundamental, tarefa de oferecer um setting terapêutico e um ambiente de cuidado que funcione como um novo “ambiente suficientemente bom”. Um ambiente capaz de sobreviver aos ataques, de acolher a angústia impensável, de reconhecer o gesto espontâneo e de facilitar a emergência do verdadeiro self. É um convite à escuta daquilo que não é dito em palavras, mas que é atuado na relação, buscando encontrar, no cerne da destrutividade, o anseio por cuidado, por limites que protejam e por um lugar no mundo onde o adolescente possa simplesmente ser e continuar a se desenvolver. Este tipo de cuidado especializado é um componente vital da Saúde Mental infanto-juvenil.
A prática clínica e a Atenção Psicossocial com esses jovens exigem do terapeuta e da equipe não apenas conhecimento técnico, mas também uma profunda capacidade de empatia, paciência e, acima de tudo, a crença na capacidade inata do ser humano de amadurecer, desde que lhe seja oferecido um ambiente facilitador. A recuperação, nesse contexto, não se mede apenas pela cessação dos comportamentos disruptivos, mas pela conquista de uma maior integração pessoal, pelo desenvolvimento da capacidade de se relacionar de forma mais autêntica e criativa, e pelo sentimento de estar vivo e de ser real – pilares de uma Saúde Mental robusta. A construção de um projeto terapêutico singular, que envolva a rede de apoio e os diversos atores da Atenção Psicossocial, é crucial para sustentar esse processo.
Reitera-se que a compreensão winnicottiana não invalida outras abordagens ou a necessidade, em certos casos, de intervenções multidisciplinares, farmacológicas de Sanches, C.E., para dependência química, que também pode envolver comorbidades psiquiátricas ou socioeducativas. Contudo, ela enriquece o campo da Saúde Mental ao trazer à luz a dimensão subjetiva e relacional do sofrimento, oferecendo um caminho para uma clínica e uma Atenção Psicossocial que sejam verdadeiramente terapêuticas, no sentido mais profundo do termo: o de restaurar a esperança e a possibilidade de um desenvolvimento emocional mais pleno e integrado à comunidade. A implementação de políticas de Saúde Mental que apoiem e capacitem profissionais para este tipo de escuta e manejo, e que fortaleçam a rede de Atenção Psicossocial no território, é, portanto, essencial para que menos adolescentes precisem recorrer à linguagem da delinquência para comunicar seu sofrimento e sua necessidade de cuidado.
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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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