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Psicanálise: a Escuta dos Marcadores Sociais da Diferença

Psicanálise: a Escuta dos Marcadores Sociais da Diferença

A psicanálise, desde sua fundação, tem sido desafiada a expandir seu olhar para além da vida psíquica individual. Hoje, com a crescente visibilidade de debates sobre desigualdades, discriminação e opressão, a clínica se depara com um sofrimento que não pode ser compreendido apenas como um conflito interno. São as marcas da história, da cultura e do social que se inscrevem no corpo e na mente, moldando a subjetividade e a experiência do indivíduo. A psicanálise tem as ferramentas para escutar esse sofrimento? Ela pode dialogar com conceitos como gênero, raça e classe social? Este artigo propõe uma reflexão aprofundada, explorando como as teorias de Freud e Winnicott oferecem um vasto campo de possibilidades para uma clínica atenta e responsável.

Arte que representa a complexidade e interseccionalidade das identidades sociais.

Freud, o Coletivo e as Raízes da Diferença

Para compreender a relação entre psicanálise e sociedade, é fundamental revisitar as origens da própria teoria. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, já sustentava que a psicologia individual é, ao mesmo tempo, também psicologia social.8 Em obras como

Totem e Tabu, Freud não se limitou a analisar os traumas e desejos de um indivíduo, mas buscou desvendar os fundamentos da organização social e moral.9 A partir de um mito original, ele sugere que a civilização e a cultura são fundadas a partir da renúncia a instintos inerentes ao ser humano, uma repressão que, embora necessária para a convivência, é também a fonte de conflitos e tensões.9

A lógica freudiana nos permite entender as hierarquias e as desigualdades sociais – que sustentam os marcadores de diferença – não como um acaso, mas como uma manifestação da própria complexidade do laço social. A luta por poder, as relações de dominação e a violência coletiva são temas que se entrelaçam na obra freudiana, convidando o analista a olhar para o sofrimento individual com a lente da cultura. Para Freud, a política, em um sentido amplo e não partidário, é o inconsciente, e o inconsciente é a política, pois ambos respondem a uma mesma estrutura e causa.8 Essa visão pioneira lança as bases para uma psicanálise que não se fecha em si mesma, mas se abre para a compreensão da subjetividade como um produto social, onde as marcas de pertencimento se misturam aos conflitos psíquicos mais primitivos.

 

Winnicott e o Indivíduo no Contexto Social

Se Freud nos dá o mapa teórico para a sociedade, D. W. Winnicott nos oferece a bússola para o sofrimento individual nesse ambiente. Sua teoria se baseia na premissa de que a saúde psíquica é estabelecida pelo “ambiente de holding“, que a mãe comum, com seu cuidado amoroso, oferece ao bebê.12 A teoria winnicottiana, no entanto, vai além do par mãe-bebê, estendendo o conceito de

holding para o “círculo cada vez mais amplo da família e da escola e da vida social”.12

Ao olhar para o sofrimento psíquico de um indivíduo marginalizado, a psicanálise winnicottiana nos permite enxergar além da dinâmica interna. A violência estrutural, o racismo sistêmico, a discriminação de gênero e a desigualdade de classe podem ser compreendidos como uma “falha ambiental” em escala social. Assim como a falta de um ambiente de holding na infância pode gerar um self falso e uma tendência antissocial, a falha do ambiente social em acolher e reconhecer a diversidade pode levar a um profundo adoecimento e ao colapso psíquico.13 Winnicott nos ensina que o trabalho clínico não se resume a interpretar fantasias, mas a oferecer um ambiente seguro onde o indivíduo pode ser ele mesmo, e onde o sofrimento causado por um ambiente violador possa ser elaborado.19

Essa abordagem propõe uma conexão vital. O sofrimento de uma pessoa que experimenta o racismo não é apenas um sintoma de um conflito inconsciente, mas também uma reação a um ambiente que falhou em sustentá-la. A psicanálise, ao dialogar com a teoria de Winnicott, pode reconhecer que a violência de um contexto externo tem o poder de impactar profundamente a realidade interna do sujeito. Para ir além, o blog www.exitopsicologia.com.br já abordou, em outro artigo, o impacto da tecnologia na construção do self, demonstrando como a clínica tem se adaptado para compreender o reflexo das falhas ambientais na era digital.

 

O Papel do Analista na Escuta dos Marcadores Sociais

A complexa relação entre o psíquico e o social exige do analista uma clínica que seja capaz de escutar não apenas o que é dito, mas também o que é desmentido. O “desmentido” (Verleugnung), um conceito explorado por Sándor Ferenczi, ganha uma dimensão crucial na clínica contemporânea. Ele se refere à negação da realidade, um mecanismo de defesa que, quando aplicado ao contexto social, pode se manifestar como uma “hipocrisia” por parte da comunidade psicanalítica em reconhecer a importância das questões de raça, gênero e classe.7

Para superar essa resistência, o psicanalista precisa desenvolver uma escuta sensível às “marcas sociais de pertencimento” do analisando.7 Isso significa reconhecer que a subjetividade é construída a partir da interseccionalidade de diferentes fatores, como gênero, raça e classe social, que não podem ser vistos como meros detalhes, mas como elementos que compõem a experiência do sujeito.20 Não se trata de “interpretar” a política ou o social, mas de criar um espaço onde o analisando possa elaborar o sofrimento que esses marcadores impõem. A psicanálise pode oferecer a possibilidade de um sujeito elaborar o trauma da discriminação, do preconceito e da exclusão, sem que o analista precise se tornar um ativista. O objetivo da clínica é o sujeito, mas um sujeito que carrega em sua constituição a história e as marcas do seu lugar no mundo. O trabalho analítico se torna, então, um ato de libertação, que permite ao indivíduo se desvencilhar da ideologia dominante e da opressão.18

 

Sigilo Profissional: O Fundamento Ético da Escuta Sensível

Em meio a uma discussão tão complexa, o sigilo profissional se apresenta não como uma mera formalidade, mas como o pilar ético que sustenta a possibilidade de uma clínica atenta. A regra do sigilo é absoluta: o psicanalista não pode divulgar, sob nenhuma circunstância, qualquer informação que lhe tenha sido confiada pelo analisando.15 Essa rigorosa ética de não violação é o que cria o “ambiente de

holding” necessário para que a escuta do sofrimento social possa ocorrer.

O sigilo protege o analisando de uma segunda violência, que seria a exposição de suas dores mais íntimas ao mundo exterior. Ele permite que o sujeito explore os traumas e as falhas ambientais do contexto social, como o preconceito racial ou de gênero, sem o medo de retaliação. Para o psicanalista, a ética se traduz como uma “responsabilidade assimétrica emocionalmente carregada em direção ao outro” 17, um compromisso de acolher o sujeito e seu sofrimento sem julgamentos e com total confidencialidade. Essa postura ética é a base para o diálogo entre a psicanálise e as questões sociais, pois o analista se torna um facilitador de um espaço onde a liberdade de expressão não é apenas um direito, mas a própria condição de possibilidade da cura.

 

Rumo a uma Clínica Atenta às Questões Sociais

A psicanálise, ao se confrontar com a complexidade dos marcadores sociais da diferença, é convocada a atualizar seus instrumentos teóricos e sua prática clínica. Ao revisitar as obras de Freud, encontramos o arcabouço para entender o laço social e suas tensões. Em Winnicott, descobrimos a lente para o sofrimento que emerge das falhas ambientais, sejam elas no contexto familiar ou no tecido social. E, na ética inegociável do sigilo profissional, encontramos o fundamento para uma escuta que é, ao mesmo tempo, científica e profundamente humana.

O diálogo entre a psicanálise e as questões sociais não visa a uma “psicanálise aplicada” ou a uma ideologização da clínica.11 A intenção é manter a fidelidade à ética de escuta e acolhimento do sujeito, reconhecendo que a individualidade é inseparável das estruturas sociais. O papel do psicanalista é o de oferecer um espaço de elaboração, onde o sofrimento causado pela discriminação e pela opressão possa ser simbolizado e transformado. Ao fazer isso, a psicanálise se mantém relevante, viva e fiel à sua missão de compreender a complexidade da condição humana na contemporaneidade.

 

Fontes de Pesquisa

  1. Canavêz, F. & Verztman, J. S. (2021). Somos capazes de escutar os desmentidos sociais? (Disponível em: https://periodicos.uff.br/ayvu/article/download/49953/30783). Relevância: Artigo científico que discute a resistência da comunidade psicanalítica em abordar os marcadores sociais.
  2. Piscitelli, A. (2002). Re-criando a diferença: uma análise da literatura feminista e de gênero. (Disponível em: https://www.scielo.br/j/read/a/z5t7Sqjtm6cHXnFDK6Zx5XM/?format=pdf). Relevância: Fonte externa que aborda a construção social das diferenças e desigualdades, fundamental para a base teórica do texto.
  3. Winnicott, D. W. (1971). Playing and Reality. Relevância: Obra clássica que introduz o conceito de holding e a relação entre o desenvolvimento emocional e o ambiente, essencial para a argumentação do artigo.
  4. Freud, S. (1921). Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. Relevância: Texto fundamental que estabelece a ligação entre a psicologia individual e a social, servindo de base para a discussão sobre a formação da sociedade e seus conflitos.
  5. Abordagem da psicanálise com questões sociais, políticas e culturais. (Disponível em: https://www.scielo.br/j/psoc/a/prXH3tYrwGJS6Xsx6NLswRw/). Relevância: Artigo que explora a tensão e o paradoxo entre a psicanálise e a política, reforçando a profundidade do debate.

Referências citadas

  1. PSICANÁLISE EM 2025 – YouTube, acessado em setembro 23, 2025, https://www.youtube.com/watch?v=nyYODRhLvKw
  2. Psicanálise – Jornal da USP, acessado em setembro 23, 2025, https://jornal.usp.br/tag/psicanalise/
  3. Blog – Centro de Psicologia e Educação Êxito, acessado em setembro 23, 2025, https://exitopsicologia.com.br/blog/
  4. Blog – Centro de Psicologia e Educação Êxito, acessado em setembro 23, 2025, https://exitopsicologia.com.br/blog/page/2/?et_blog
  5. 75 Temas Atuais para TCC Psicologia para escolher certo! 2025, acessado em setembro 23, 2025, https://temasparatcc.com/psicologia/temas-para-tcc-psicologia/
  6. TENDÊNCIAS PEDAGÓGICAS: APROXIMAÇÕES ENTRE A PEDAGOGIA FREIREANA E A PSICANÁLISE FREUDIANA – Atena Editora, acessado em setembro 23, 2025, https://atenaeditora.com.br/catalogo/dowload-post/82768
  7. Fernanda Canavêz1 Julio Sergio Verztman2 Este artigo objetiva discutir o impacto do desmentido na escuta do analista, com desta, acessado em setembro 23, 2025, https://periodicos.uff.br/ayvu/article/download/49953/30783
  8. PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA AMIZADE ESTRUTURAL[1], acessado em setembro 23, 2025, https://institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise-e-politica-uma-amizade-estrutural1/
  9. PSICANÁLISE E POLÍTICA SEGUNDO FREUD – ABPC Online, acessado em setembro 23, 2025, https://abpconline.org/psicanalise-e-politica-segundo-freud/
  10. PSICANÁLISE E POLÍTICA: POR UMA PRÁTICA DA INCOMPLETUDE PSICANÁLISE E POLÍTICA – SciELO, acessado em setembro 23, 2025, https://www.scielo.br/j/psoc/a/prXH3tYrwGJS6Xsx6NLswRw/
  11. Freud e Política, Psicanálise e Política: um resumo, acessado em setembro 23, 2025, https://www.psicanaliseclinica.com/freud-e-politica/
  12. Donald Winnicott – Wikipedia, acessado em setembro 23, 2025, https://en.wikipedia.org/wiki/Donald_Winnicott
  13. Tendência antissocial em Winnicott: teoria e clínica – Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica, acessado em setembro 23, 2025, https://www.apppp.pt/revista/vol-5-n-2-dez-2014/tendencia-antissocial-em-winnicott-teoria-e-clinica_14
  14. DIFERENÇAS E INTERSECCIONALIDADES NAS ORGANIZAÇÕES: ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES DE LÍDERES – SciELO, acessado em setembro 23, 2025, https://www.scielo.br/j/read/a/z5t7Sqjtm6cHXnFDK6Zx5XM/?format=pdf
  15. CÓDIGO DE ÉTICA DO PSICANALISTA, acessado em setembro 23, 2025, https://onp.org.br/mais/codigo-de-etica-do-psicanalista
  16. Sigilo | Ana Bortolin | Psicanalista, acessado em setembro 23, 2025, https://www.anabortolin.com.br/sigilo
  17. Ética e psicanálise, acessado em setembro 23, 2025, https://revista.sppa.org.br/RPdaSPPA/article/download/536/769
  18. Política e psicanálise: conexões – SciELO, acessado em setembro 23, 2025, https://www.scielo.br/j/pc/a/GXDDPzrzPWR5TP46f96Q5jq/
  19. [W. D. Winnicott and the transitional object in infancy]. – ResearchGate, acessado em setembro 23, 2025, https://www.researchgate.net/publication/10616142_W_D_Winnicott_and_the_transitional_object_in_infancy
  20. Os marcadores sociais da diferença: contribuições para a terapia ocupacional social, acessado em setembro 23, 2025, https://www.scielo.br/j/cadbto/a/PyVQWfBrjPMqSS9xWWNTKfK/?lang=pt
  21. Marcadores sociais da diferença: uma perspectiva interseccional sobre ser estudante negro e deficiente no Ensino Superior brasileiro | Revista Educação Especial – Portal de Periódicos UFSM, acessado em setembro 23, 2025, https://periodicos.ufsm.br/educacaoespecial/article/view/30948

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