Psicanálise na Educação: Acolhimento, Brincar e o Inconsciente
Introdução: O Desafio da Educação e o Olhar da Psicanálise
O ambiente escolar contemporâneo enfrenta desafios que vão muito além da simples transmissão de conhecimento. Professores, alunos e famílias se deparam com questões complexas, como o mal-estar, a agressividade e a apatia, que a pedagogia tradicional nem sempre consegue abordar de forma eficaz. A educação, em sua essência, é um processo de formação do sujeito integral, o que exige um olhar que contemple as forças invisíveis que atuam no psiquismo humano.1
Para Sigmund Freud, o pai da psicanálise, educar era uma das “três tarefas impossíveis”, ao lado de governar e curar.2 Essa afirmação não se traduz em um sinal de fracasso, mas sim em um profundo reconhecimento das forças inconscientes e da complexidade intrínseca à formação humana. A psicanálise, ao desvendar o inconsciente, oferece uma lente para compreender os conflitos e desejos reprimidos que moldam o comportamento, tanto do estudante quanto do educador.1
- W. Winnicott, um dos herdeiros mais proeminentes do pensamento freudiano, expandiu essa visão ao dar ênfase à importância do ambiente. Sua teoria, derivada de sua prática como pediatra, mostra que a formação da personalidade está diretamente ligada à qualidade da relação e do sustento emocional oferecidos no início da vida.4 Este artigo, portanto, se propõe a aprofundar a interseção entre psicanálise e educação, examinando como os conceitos de Freud e Winnicott podem iluminar a origem da violência escolar, redefinir o papel do educador e resgatar o poder transformador do brincar no processo de aprendizagem.
O Inconsciente na Sala de Aula: Agressividade e Deprivação
A violência no cenário escolar é um fenômeno multifacetado, e o olhar psicanalítico oferece uma compreensão que vai além da superfície do comportamento. Freud, em sua obra Além do princípio do prazer, introduziu a noção especulativa da pulsão de morte (também traduzida como “instinto de morte”), uma força intrapsíquica que impulsiona a agressão e a destruição.6 No contexto escolar, essa pulsão não se manifesta apenas em atos de
bullying ou agressão física, mas também em formas mais sutis de autodestruição, como a apatia, o desinteresse e a evasão escolar. A psicanálise compreende que a violência é a exteriorização de uma tensão interna, um sintoma de um conflito inconsciente, e não a causa primária do problema. O educador, ao adotar essa perspectiva, é convidado a ir além da mera punição e a buscar a origem do mal-estar.
Complementando a visão de Freud, Winnicott introduziu o conceito de deprivação, que se refere à falha do ambiente em prover as condições de sustentação e acolhimento necessárias para o desenvolvimento saudável.6 A teoria de Winnicott cria uma ponte essencial entre a força endógena da agressividade freudiana e a falha exógena do ambiente. A violência escolar pode ser vista como uma manifestação direta da deprivação ambiental. Um aluno que se sente desamparado, ignorado ou em um ambiente falho pode desenvolver um comportamento antissocial como uma tentativa desesperada de “encontrar o objeto perdido” ou de chamar a atenção para sua necessidade de sustentação. A agressividade, do ponto de vista winnicottiano, não é um comportamento final, mas um meio de comunicação, uma esperança de que o ambiente reaja e o contenha. Uma resposta violenta ou punitiva por parte da instituição apenas confirma a falha, enquanto uma resposta de acolhimento pode iniciar o processo de reparação.
O Educador como Agente de Acolhimento (Holding): Construindo um Ambiente Suficientemente Bom
O papel do educador na visão winnicottiana se expande consideravelmente. O conceito de holding (sustentação ou acolhimento) vai além do ato físico de conter e se estende ao apoio emocional e à sensibilidade necessária para que o professor “entenda” as necessidades do aluno.4 É a função de ser uma presença estável e previsível, que permite ao estudante sentir-se seguro para existir e se expressar. Para aprofundar a compreensão da importância dessa relação, você pode buscar mais informações sobre a relação terapêutica e suas bases, como a função de
holding, no site www.exitopsicologia.com.
A metáfora da “mãe suficientemente boa” de Winnicott pode ser aplicada ao contexto escolar, propondo o conceito de um “professor suficientemente bom”.9 Este professor não é perfeito, mas é capaz de oferecer um ambiente seguro e previsível para que a criança possa se desenvolver. O que é crucial nessa ideia é que a falha do professor também é importante. Quando o educador comete um erro ou falha em atender uma necessidade, e o aluno consegue vivenciar e sobreviver a essa falha, ele aprende gradualmente a lidar com a desilusão e com a realidade externa, um passo fundamental para o amadurecimento. O
holding na educação não é sobre superproteção, mas sobre uma presença que permite ao aluno expressar-se e, com o tempo, enfrentar a realidade por conta própria.
Autor | Conceito-Chave | Relevância para a Educação | Aplicação Prática (Exemplo) |
Freud | Pulsão de Morte e Recalque | Compreensão da agressividade, do mal-estar e dos conflitos inconscientes. | O professor como mediador de conflitos inconscientes que se manifestam em sala. |
Winnicott | Deprivação, Holding e Espaço Potencial | Compreensão da importância do ambiente, do acolhimento e da criatividade para o desenvolvimento. | O professor como figura de sustentação, que oferece um ambiente seguro e incentiva o brincar criativo. |
O Brincar como Caminho para a Criatividade e a Aprendizagem
Para Winnicott, o brincar não é uma simples atividade recreativa, mas a atividade central da vida, um “verbo”, um processo criativo onde a criança se manifesta.9 É através do brincar que a criança pode experimentar o mundo e construir sua própria subjetividade. Ele chamou o espaço onde isso acontece de “espaço potencial”, um campo intermediário entre a realidade interna do sujeito e a externa.11 Este é o terreno fértil onde a criatividade e o aprendizado se manifestam.
A educação tradicional, muitas vezes focada na memorização e na transmissão de conteúdo de forma rígida, pode falhar em nutrir este espaço potencial. Ao não valorizar o brincar, a criatividade e a experimentação, a escola pode acabar sufocando a capacidade do aluno de construir seu próprio conhecimento e de encontrar seu lugar no mundo. O brincar é o antídoto para a rigidez pedagógica, permitindo que a “vida” e a “experiência” se manifestem.9
Winnicott mostra que a aprendizagem genuína não ocorre de fora para dentro, mas de dentro para fora, a partir da capacidade criativa e espontânea do sujeito. Ao permitir e encorajar o brincar (e a criatividade em geral), a escola não está perdendo tempo, mas investindo no desenvolvimento do self do aluno, que é a base para qualquer forma de conhecimento. Um aluno que “brinca” é um aluno que se apropria do conhecimento e o transforma em algo seu, construindo pontes entre o subjetivo e o objetivo.
Desafios Contemporâneos na Educação: Tecnologia, Saúde Mental e Inclusão
A psicanálise tem se mostrado uma ferramenta relevante para abordar os desafios do mundo hipermoderno que se manifestam no ambiente escolar, oferecendo um espaço de “conversação” para educadores, alunos e pais falarem sobre suas inquietações e angústias.12
A tecnologia, por exemplo, é um desses grandes desafios. A era digital, que mudou a forma como nos relacionamos, também afeta o psiquismo humano. Conceitos freudianos como o narcisismo, o investimento emocional em si mesmo, podem ser observados na busca incessante por uma imagem ideal nas redes sociais, o que pode adiar o encontro com o outro e gerar o que Freud chamou de mal-estar na civilização.14
Além disso, a saúde mental se tornou um tema central. A psicanálise, no entanto, não utiliza o termo “saúde mental”, mas entende o psiquismo como uma negociação diária com emoções e paixões.16 Professores, em particular, enfrentam um grande esgotamento psíquico, sendo sua profissão considerada uma das mais estressantes. O olhar psicanalítico pode ajudar a contextualizar essa vulnerabilidade e possibilitar que os educadores encontrem ferramentas para lidar com o estresse e promover o autocuidado.16
Outro desafio crucial é a inclusão. A psicanálise pode oferecer uma colaboração importante na inclusão de crianças com psicose e autismo. Isso exige não apenas uma técnica, mas uma posição ética do educador, que deve se responsabilizar pela experiência do aluno e flexibilizar os processos de ensino para construir novas alternativas existenciais.18
Conclusão: Uma Educação Humanizada
A visão psicanalítica, fundamentada nas teorias de Freud e Winnicott, oferece um olhar humanizado e profundo sobre a educação. Freud nos ajuda a reconhecer as forças destrutivas e os conflitos inconscientes que permeiam o ambiente escolar, revelando que a violência e o mal-estar são, frequentemente, sintomas de um sofrimento psíquico. Por sua vez, Winnicott nos oferece ferramentas conceituais essenciais, como o holding, a importância do ambiente e o poder do brincar, que podem ser aplicadas para criar um espaço de acolhimento e desenvolvimento.
Longe de ser uma abordagem que oferece respostas prontas, a psicanálise nos convida a escutar, a pensar e a criar um ambiente onde a formação humana pode florescer em toda a sua complexidade. A escola, sob essa perspectiva, deixa de ser apenas um local de conteúdo e se torna um espaço de sustentação, onde a criatividade e a saúde emocional dos alunos são valorizadas, e a aprendizagem é compreendida como um processo de apropriação do mundo através da experiência e da criação.
Fontes de Pesquisa:
- Freud, S. (1920). Além do princípio do prazer.
- Winnicott, D. W. (1971). O brincar e a realidade.
- Winnicott, D. W. (1965). O ambiente e os processos de maturação.
- Psicanálise e educação escolar: contribuições de Freud e Winnicott à compreensão do fenômeno da violência escolar (Periódicos Uninove). Link: https://periodicos.uninove.br/dialogia/article/view/20478
- Winnicott e o brincar (Revista Agora). Link: https://www.scielo.br/j/agora/a/fRbthyPwvJ5w9xdNz74MYJN/?lang=pt
Referências citadas
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- Psicanálise e Educação: descubra novos operadores de aprendizagem – blog do IPOG, acessado em setembro 11, 2025, https://blog.ipog.edu.br/saude/psicanalise-e-educacao/
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- Holding e Formação Da Personalidade – Winnicott | PDF | Complexo de Édipo – Scribd, acessado em setembro 11, 2025, https://pt.scribd.com/document/452247988/Holding-e-Formacao-da-Personalidade-Winnicott
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- Psicanálise E Tecnologia: O Impacto Da Era Digital – Priscila Soares Falchi, acessado em setembro 11, 2025, https://priscilafalchi.com.br/psicanalise-e-tecnologia-o-impacto-da-era-digital/
- Saúde mental: professor não deve resolver todos os problemas – Revista Educação, acessado em setembro 11, 2025, https://revistaeducacao.com.br/2024/09/27/saude-mental-2/
- a contribuição da psicanálise para a saúde mental dos docentes – ResearchGate, acessado em setembro 11, 2025, https://www.researchgate.net/publication/376769995_A_CONTRIBUICAO_DA_PSICANALISE_PARA_A_SAUDE_MENTAL_DOS_DOCENTES
- Um estrangeiro entre nós,Psicanálise e Educação Especial: diálogos em torno da inclusão de crianças que vivem impasses em, acessado em setembro 11, 2025, https://periodicos.ufsc.br/index.php/pontodevista/article/download/20422/18656/64901
- Reflexões sobre a diversidade do campo da psicanálise – Pepsic, acessado em setembro 11, 2025, https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352018000100007
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