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O Celular e o Self em Construção

O Celular e o Self em Construção: Uma Perspectiva Winnicottiana sobre o Desenvolvimento na Era Digital

No cenário contemporâneo, a presença ubíqua dos dispositivos móveis, em especial o celular, redefine as paisagens do desenvolvimento infantil e adolescente. Como psicólogos de abordagem psicanalítica, e inspirados pela riqueza do pensamento de D. W. Winnicott, somos convidados a olhar para essa nova realidade não apenas como um fenômeno social, mas como um elemento que interage profundamente com a constituição do self e a capacidade de estar no mundo.

Winnicott nos ensinou que o desenvolvimento saudável depende fundamentalmente de um “ambiente de holding” suficientemente bom – um ambiente que acolhe, contém e se adapta às necessidades do bebê e da criança, permitindo que sua espontaneidade e seu “verdadeiro self” emerjam. Nesse contexto, o celular, com sua capacidade de conectar e desconectar, de preencher vazios e de exigir atenção constante, pode se tornar um desafio significativo para a oferta desse ambiente.

 

O Celular como Objeto Transicional e a Capacidade de Estar Só

Para Winnicott, o objeto transicional é uma primeira posse “não-eu”, um pedaço do mundo externo que representa a mãe e permite à criança lidar com a ausência e desenvolver a capacidade de estar só. O celular, em certa medida, pode assumir uma função similar, oferecendo uma sensação de conexão e segurança. No entanto, sua natureza algorítmica e a gratificação instantânea que proporciona podem, paradoxalmente, impedir o desenvolvimento da verdadeira capacidade de estar só.

Um estudo recente, “Protecting the Developing Mind in a Digital Age: A Global Policy Imperative” (Thiagarajan, Newson & Swaminathan, 2025), aponta que a posse de um smartphone antes dos 13 anos está associada a piores desfechos de saúde mental na idade adulta jovem, incluindo pensamentos suicidas, agressão, sentimentos de desapego da realidade e diminuição da autoestima. Esses achados ressoam com a preocupação winnicottiana: se o objeto transicional se torna uma fonte de estímulo excessivo ou de validação externa constante, ele pode dificultar o processo de individuação e a descoberta da riqueza interna que advém da solitude criativa. A busca incessante por curtidas e validação nas redes sociais, conforme sugerem as pesquisas, pode levar à construção de um “falso self”, uma persona adaptada às expectativas externas, em detrimento da expressão autêntica do “verdadeiro self”. Para uma compreensão mais aprofundada sobre a construção da autoimagem, convidamos à leitura de “A Autoestima sob a Ótica Psicanalítica” (Exitopsicologia, s.d.). Além disso, dado o aumento de pensamentos suicidas, é crucial estar atento aos sinais e buscar apoio; a campanha “Setembro Amarelo: A Campanha que Salva Vidas” (Exitopsicologia, s.d.) oferece recursos importantes.

A Espontaneidade e o Impacto na Saúde Mental

A espontaneidade, para Winnicott, é a manifestação do verdadeiro self, o gesto criativo que surge do interior da criança. O ambiente digital, com seus roteiros predefinidos, filtros de imagem e a pressão por desempenho, pode sufocar essa espontaneidade. As plataformas digitais, com seus algoritmos projetados para maximizar o engajamento, podem desviar a atenção das crianças e adolescentes de atividades essenciais para o desenvolvimento, como o brincar livre, a interação face a face e o sono.

As pesquisas corroboram essa preocupação. Uma matéria do UOL (“Adolescentes se sentem mais felizes quando estão sem redes sociais, diz pesquisa”, 2024) revela que a abstinência de redes sociais pode trazer maior felicidade aos adolescentes. Outra reportagem (“O que acontece quando adolescentes deixam de usar seus celulares”, 2024) explora os benefícios de um “detox digital”, mostrando que a redução do uso do celular pode levar a melhorias na qualidade do sono, na concentração e nas relações interpessoais. Esses dados sugerem que a diminuição da exposição digital permite que a espontaneidade e a capacidade de se relacionar de forma mais genuína floresçam. A agressão e o desapego da realidade, sintomas correlacionados ao uso precoce de smartphones no estudo de Thiagarajan et al. (2025), podem ser compreendidos como manifestações de um self que não encontrou espaço para se expressar autenticamente, resultando em frustração e dificuldade de simbolização. Para entender melhor os desafios comportamentais na adolescência, confira nosso artigo sobre “TRANSTORNOS DISRUPTIVOS NA ADOLESCÊNCIA” (Exitopsicologia, s.d.).

O Ambiente de Holding e as Relações Familiares

O estudo “Protecting the Developing Mind in a Digital Age: A Global Policy Imperative” (Thiagarajan, Newson & Swaminathan, 2025) também destaca que as relações familiares precárias e o cyberbullying são fatores mediadores significativos entre o uso precoce de smartphones e piores desfechos de saúde mental. Do ponto de vista winnicottiano, a qualidade do “holding” parental é essencial. Quando pais e filhos estão imersos em seus próprios dispositivos, o espaço de interação e a troca de olhares, gestos e palavras – elementos vitais para a construção do self e da capacidade de se relacionar – podem ser fragilizados. O cyberbullying, por sua vez, representa uma falha catastrófica no ambiente de holding social, expondo o adolescente a experiências de aniquilação simbólica que podem minar a confiança no ambiente e em si mesmo. Para estratégias de melhoria nas interações, recomendamos a leitura sobre “Comunicação Não Violenta: A Chave para Relações Saudáveis” (Exitopsicologia, s.d.).

Implicações para a Prática e a Parentalidade

Diante desse cenário, a perspectiva winnicottiana nos convida a ir além da mera proibição e a pensar na qualidade da experiência. Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de reconhecer seus potenciais impactos no desenvolvimento do verdadeiro self.

  1. A Qualidade do Holding Digital: Pais e cuidadores precisam estar atentos à sua própria presença e à forma como a tecnologia se insere na dinâmica familiar. Criar “zonas livres de tela” e momentos de interação genuína é fundamental para preservar o espaço de holding.
  2. Fomentar a Espontaneidade e o Brincar: Incentivar o brincar livre, a criatividade sem roteiros e a exploração do mundo real é crucial para que o verdadeiro self possa se manifestar. O tédio, muitas vezes preenchido pelo celular, pode ser um terreno fértil para a criatividade e a descoberta interna.
  3. Apoio ao Desenvolvimento da Capacidade de Estar Só: Ajudar crianças e adolescentes a tolerar e a usufruir da própria companhia, sem a necessidade de estímulo externo constante, é um pilar do desenvolvimento saudável. Isso envolve a construção de um self forte o suficiente para se sentir seguro na ausência do outro. Para saber mais sobre a avaliação em crianças, consulte “Avaliação Psicológica no Contexto da Infância” (Exitopsicologia, s.d.).
  4. Educação para a Consciência Digital: É imperativo que crianças e adolescentes desenvolvam uma “literacia digital” que lhes permita discernir, criticar e se proteger dos aspectos potencialmente danosos do ambiente online, como a manipulação algorítmica e o cyberbullying.

Em suma, a era digital nos desafia a repensar o “ambiente de holding” e a forma como ele pode ser oferecido em um mundo cada vez mais conectado. A psicanálise winnicottiana nos oferece um farol, lembrando-nos que o cerne do desenvolvimento reside na possibilidade de ser, de se expressar autenticamente e de construir um self integrado, capaz de transitar entre o mundo interno e externo com vitalidade e criatividade. Proteger a mente em desenvolvimento na era digital é, portanto, um imperativo que exige nossa atenção e nosso cuidado, para que as futuras gerações possam florescer em sua plenitude.

Referências Bibliográficas

Exitopsicologia. (s.d.). A Autoestima sob a Ótica Psicanalítica. Disponível em: https://exitopsicologia.com.br/blog/a-autoestima-sob-a-otica-psicanalitica/

Exitopsicologia. (s.d.). Avaliação Psicológica no Contexto da Infância. Disponível em: https://exitopsicologia.com.br/blog/avaliacao-psicologica-no-contexto-da-infancia/

Exitopsicologia. (s.d.). Comunicação Não Violenta: A Chave para Relações Saudáveis. Disponível em: https://exitopsicologia.com.br/blog/comunicacao-nao-violenta-a-chave-para-relacoes-saudaveis/

Exitopsicologia. (s.d.). Setembro Amarelo: A Campanha que Salva Vidas. Disponível em: https://exitopsicologia.com.br/blog/setembro-amarelo-a-campanha-que-salva-vidas/

Exitopsicologia. (s.d.). TRANSTORNOS DISRUPTIVOS NA ADOLESCÊNCIA. Disponível em: https://exitopsicologia.com.br/blog/transtornos-disruptivos-na-adolescencia/

Thiagarajan, T. C., Newson, J. J., & Swaminathan, S. (2025). Protecting the Developing Mind in a Digital Age: A Global Policy Imperative. Journal of Human Development and Capabilities, 26(3), 493-504. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/19452829.2025.2518313#abstract 

UOL. (2024, 12 de março). Adolescentes se sentem mais felizes quando estão sem redes sociais, diz pesquisa. Agência Estado. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/03/12/adolescentes-se-sentem-mais-felizes-quando-estao-sem-redes-sociais-diz-pesquisa.htm

UOL. (2024, 18 de junho). O que acontece quando adolescentes deixam de usar seus celulares. VivaBem. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2024/06/18/o-que-acontece-quando-adolescentes-deixam-de-usar-seus-celulares.htm

Winnicott, D. W. (1971). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.

Winnicott, D. W. (1975). Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves.

Winnicott, D. W. (1989). Tudo Começa em Casa. São Paulo: Martins Fontes.

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