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FARMACOLOGIA E DEPENDÊNCIA QUÍMICA: UMA REVISÃO CLÍNICA

FARMACOLOGIA E DEPENDÊNCIA QUÍMICA: UMA REVISÃO CLÍNICA

 

SANCHES, Carlos Eduardo¹

RESUMO

Este artigo apresenta uma revisão clínica das abordagens farmacológicas empregadas no tratamento da dependência química, uma condição complexa caracterizada por um padrão disfuncional de uso de substâncias com consequentes alterações clínicas e comportamentais. Com base em classificações e critérios diagnósticos contemporâneos, o presente trabalho explora os substratos neurobiológicos subjacentes ao transtorno do uso de substâncias e a influência de diversas classes de fármacos psicoativos, notadamente álcool, opioides e estimulantes. Destaca-se o papel do tratamento farmacológico no manejo das síndromes de abstinência agudas e na implementação de estratégias de manutenção voltadas para a prevenção de recaídas. Enfatiza-se, ainda, a imperatividade de uma abordagem terapêutica multifacetada, que integre harmoniosamente intervenções farmacológicas e psicossociais, como premissa para a consecução de desfechos clínicos favoráveis a longo prazo.

Palavras-chave: Dependência química, Farmacoterapia, Tratamento da abstinência, Prevenção de recaída, Diagnóstico duplo.

¹ Bacharel em Administração pelo Centro Universitário de Santo André, Bacharel em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo. Especialista em Psicanálise Clínica e Ensino Lúdico.

 

  1. INTRODUÇÃO

A dependência química, categorizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na Classificação Internacional de Doenças (CID-10) como um transtorno mental e comportamental devido ao uso de substâncias psicoativas, manifesta-se como um conjunto de fenômenos comportamentais, fisiológicos e cognitivos decorrentes do uso repetitivo de uma substância (OMS, 1992; APA, 2013; Koob & Volkow, 2016). Esta condição é caracterizada pela busca compulsiva pela substância e por uma predisposição significativa à recaída, processos estes impulsionados pelos efeitos reforçadores intrínsecos aos compostos psicoativos (Volkow et al., 2016; Koob & Volkow, 2016; Leshner, 1997). O consumo crônico de substâncias como nicotina, etanol, cocaína, opioides e anfetaminas induz alterações adaptativas no sistema nervoso central, resultando em comportamentos de uso que se tornam progressivamente compulsivos e persistentes, frequentemente motivados pela busca por sensações de prazer, alívio de tensões ou modulação de estados afetivos negativos como a ansiedade (Koob, 2015; Leshner, 1997; Wise & Rompré, 1989).

No âmbito da Psicologia Clínica e da Psicofarmacologia, a compreensão aprofundada das dimensões farmacológicas da dependência revela-se fundamental. A tolerância, um fenômeno frequentemente precedente ao estabelecimento da dependência, manifesta-se como a necessidade de incremento progressivo da dose da substância para a obtenção do efeito desejado, ou, alternativamente, pela diminuição do efeito da substância com a administração continuada da mesma dosagem (Koob & Volkow, 2016; Volkow et al., 2016; Nestler, 2005). Os critérios diagnósticos para transtornos por uso de substâncias, conforme delineados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) da Associação Psiquiátrica Americana (APA, 2013), englobam aspectos como tolerância, manifestações de abstinência (sinais e sintomas fisiológicos e cognitivos desagradáveis subsequentes à interrupção ou redução do uso), uso da substância em quantidades maiores ou por período mais extenso do que o planejado, tentativas infrutíferas de cessar ou controlar o uso, investimento significativo de tempo em atividades relacionadas à substância, redução ou abandono de atividades sociais, ocupacionais ou recreativas em função do uso, e uso continuado apesar da ciência das consequências adversas persistentes ou recorrentes (APA, 2013; Leshner, 1997; Koob, 2015).

Além dos aspectos farmacológicos, a literatura especializada aponta para a relevância de múltiplos fatores de risco na predisposição e no desenvolvimento da dependência química. Tais fatores incluem vulnerabilidades genéticas, a presença de comorbidades psiquiátricas, a ausência de supervisão parental adequada e a facilidade de acesso às substâncias psicoativas (Goldstein & Volkow, 2002; Nestler, 2005; Hawkins et al., 1992). Durante os períodos críticos do desenvolvimento neuropsicológico, notadamente na infância e adolescência, a implementação de estratégias preventivas direcionadas a esses fatores de risco assume caráter estratégico (Ialongo et al., 1999; Hawkins et al., 1992; Leshner, 1997). A experimentação inicial com substâncias é frequentemente associada a uma sensação de recompensa e aceitação social, promovendo o reforço de vias neurais que associam o uso da substância ao bem-estar (Koob & Volkow, 2016; Volkow et al., 2016; Wise & Rompré, 1989). A repetição deste ciclo pode conduzir a uma priorização da busca pelo reforço artificial da substância em detrimento de reforços naturais, culminando no desenvolvimento de fissura (craving), um desejo intenso e compulsivo pela substância, e no progressivo isolamento social e familiar (Leshner, 1997; Koob, 2015; Di Chiara et al., 1999).

Para a elucidação aprofundada dos mecanismos subjacentes à dependência química, torna-se imperativo o domínio da neurofarmacologia do vício. Substâncias psicoativas com potencial aditivo exercem seus efeitos por meio da modulação de sistemas de neurotransmissores no sistema nervoso central, com particular impacto sobre os circuitos neurais envolvidos na recompensa, motivação, memória e controle executivo (Koob & Volkow, 2016; Nestler, 2005; Hyman et al., 2006). Os principais neurotransmissores implicados compreendem a dopamina, a serotonina, o glutamato e o ácido gama-aminobutírico (GABA) (Wise & Rompré, 1989; Di Chiara et al., 1999; Lüscher & Malenka, 2011). Estimulantes, como a cocaína e as anfetaminas, por exemplo, elevam acentuadamente os níveis de dopamina na fenda sináptica, induzindo efeitos euforizantes e reforçando comportamentos associados à busca e ao consumo da substância (Volkow et al., 1997; Robinson & Berridge, 2000; Di Chiara et al., 1999). A exposição crônica a estas substâncias desencadeia adaptações neurobiológicas persistentes, incluindo alterações na densidade e sensibilidade dos receptores, plasticidade sináptica e modificações epigenéticas, que contribuem significativamente para o desenvolvimento de tolerância, dependência física e psicológica, e a manifestação de síndromes de abstinência (Koob & Volkow, 2016; Nestler, 2005; Hyman et al., 2006).

O manejo farmacológico da síndrome de abstinência constitui um pilar fundamental no tratamento da dependência química, dada a potencial gravidade e o desconforto dos sintomas associados à interrupção do uso da substância (Gowing et al., 2016; Johnson et al., 2010; Sullivan et al., 2016). Intervenções farmacológicas são empregadas para atenuar a intensidade dos sintomas de abstinência, minimizar o risco de complicações médicas e facilitar a transição para o tratamento de longo prazo (Gowing et al., 2016; Johnson et al., 2010; Fiellin et al., 2014). Por exemplo, o uso de benzodiazepínicos é prática comum no tratamento da abstinência alcoólica, devido à sua capacidade de modular a hiperexcitabilidade do sistema nervoso central induzida pela cessação do etanol (Sullivan et al., 2016; APA, 2013; Gowing et al., 2016). No caso da dependência de opioides, o tratamento da síndrome de abstinência pode ser conduzido com agonistas ou agonistas parciais opioides, como metadona ou buprenorfina, que atuam reduzindo a intensidade dos sintomas e o desejo (Fiellin et al., 2014; Kampman et al., 2016; Gowing et al., 2016). A seleção do agente farmacológico, a dose e a duração do tratamento da abstinência são individualizadas, levando em consideração a substância de abuso, a severidade da dependência, a presença de comorbidades e as características específicas de cada paciente (APA, 2013; Johnson et al., 2010; Fiellin et al., 2014).

Para além do tratamento da fase aguda de abstinência, a farmacoterapia desempenha um papel estratégico na prevenção de recaídas, configurando-se como uma modalidade terapêutica de manutenção para indivíduos em processo de recuperação da dependência (Anton et al., 2006; O’Brien, 2008; Sinclair et al., 2009). Fármacos como a naltrexona, um antagonista dos receptores opioides, demonstram eficácia na redução da fissura e no bloqueio dos efeitos reforçadores de opioides e etanol, auxiliando na manutenção da abstinência (Sinclair et al., 2009; Anton et al., 2006; O’Brien, 2008). Analogamente, as terapias de reposição de nicotina (TRNs), que incluem adesivos, gomas e inaladores, são empregadas para mitigar os sintomas de abstinência nicotínica e atenuar os efeitos de reforço do tabaco, facilitando a cessação do tabagismo (Stead et al., 2012; Hartmann-Boyce et al., 2018; Anton et al., 2006). A efetividade destas estratégias farmacológicas ressalta a natureza crônica da dependência química e a necessidade, em muitos casos, de tratamento de manutenção contínuo (APA, 2013; O’Brien, 2008; Volkow et al., 2016).

Apesar dos avanços significativos na farmacoterapia da dependência química, o tratamento dessa condição é permeado por desafios complexos. A elevada prevalência de transtornos psiquiátricos comórbidos, como depressão maior, transtornos de ansiedade e do espectro da esquizofrenia, em indivíduos com transtornos por uso de substâncias, impõe uma consideração criteriosa na escolha e manejo de medicamentos psicotrópicos, visando o tratamento concomitante de ambas as condições (Kessler et al., 1997; Brady et al., 1997; SAMHSA, 2016). Adicionalmente, populações específicas, tais como adolescentes, gestantes e pacientes com comorbidades médicas significativas, demandam abordagens farmacológicas personalizadas, que considerem as particularidades fisiológicas, de desenvolvimento e os riscos associados (SAMHSA, 2016; APA, 2013; Kessler et al., 1997). A manutenção da atualização profissional dos clínicos em relação às pesquisas mais recentes e às diretrizes terapêuticas baseadas em evidências é crucial para a oferta de cuidados de alta qualidade a estas diversas populações (APA, 2013; O’Brien, 2008; SAMHSA, 2016).

A presente revisão buscou sintetizar o conhecimento corrente nessas áreas, proporcionando aos profissionais de saúde uma visão geral abrangente das estratégias farmacológicas disponíveis para o tratamento da dependência química e das múltiplas facetas que envolvem sua aplicação clínica.

 

  1. METODOLOGIA

Esta revisão clínica foi conduzida mediante uma busca sistemática e abrangente na literatura científica indexada, com o objetivo de identificar publicações relevantes nas bases de dados eletrônicas PubMed, PsycINFO, BVSPSI, Web of Science e Google Scholar. Os descritores e termos de pesquisa empregados, tanto isoladamente quanto em combinações booleanas, incluíram “dependência química”, “transtornos por uso de substâncias”, “farmacoterapia”, “tratamento farmacológico”, “síndrome de abstinência”, “prevenção de recaída”, “farmacologia comportamental” e “psicofarmacologia”, associados a termos específicos referentes a distintas classes de substâncias psicoativas (e.g., “etanol”, “álcool”, “opioides”, “cocaína”, “estimulantes”, “nicotina”). A delimitação temporal da busca priorizou publicações a partir do ano de 2000 que abordassem o tratamento farmacológico da dependência química (APA, 2013; O’Brien, 2008; Volkow et al., 2016).

A seleção dos estudos foi realizada de forma independente por dois revisores. Inicialmente, foi procedida a identificação e remoção de registros duplicados. Subsequentemente, os títulos e resumos dos artigos restantes foram avaliados quanto à elegibilidade, com base em critérios de inclusão predefinidos: disponibilidade do texto completo, idioma em português ou inglês, relevância direta para o tema do tratamento farmacológico da dependência química e publicação nos últimos 20 anos a partir do período da busca (Koob & Volkow, 2016; Nestler, 2005; Gowing et al., 2016). Foram excluídos artigos que não apresentavam dados empíricos originais, tais como revisões puramente teóricas, editoriais, cartas ao editor ou opiniões de especialistas, ou que não se alinhavam com o escopo primário da revisão (APA, 2013; O’Brien, 2008; Volkow et al., 2016).

Os artigos que atenderam aos critérios de elegibilidade na triagem inicial tiveram seus resumos e, quando necessário para maior clareza, o texto completo analisado para aplicação dos critérios de exclusão. Os critérios de exclusão englobaram artigos cujo foco principal não era o tratamento farmacológico da dependência química (e sim, por exemplo, prevenção primária do uso de substâncias, epidemiologia ou estudos de neuroimagem não relacionados à farmacologia), que se concentravam exclusivamente em intervenções psicossociais sem menção à farmacoterapia, ou que não abordavam o tratamento da dependência estabelecida (SAMHSA, 2016; APA, 2013; O’Brien, 2008).

Os artigos selecionados nesta etapa final foram submetidos à análise qualitativa. Os dados extraídos dos estudos incluíram informações sobre os tipos de intervenções farmacológicas investigadas (e.g., agonistas, antagonistas, terapias de substituição ou reposição), os desfechos clínicos avaliados (e.g., redução da intensidade da síndrome de abstinência, taxas de manutenção da abstinência, tempo até a primeira recaída, adesão ao tratamento), as características das populações de pacientes incluídas (e.g., faixa etária, gênero, substância de abuso primária, comorbidades) e os instrumentos de avaliação utilizados (Fiellin et al., 2014; Kampman et al., 2016; Stead et al., 2012).

A síntese dos dados foi realizada de forma narrativa, com o objetivo de apresentar as principais evidências relativas à eficácia, segurança e aplicabilidade das intervenções farmacológicas para os diversos transtornos por uso de substâncias. As implicações clínicas dos achados para a prática profissional do psicólogo clínico com formação em farmacologia foram discutidas, enfatizando a necessidade de uma abordagem integrada que capitalize as sinergias entre as modalidades terapêuticas farmacológicas e psicossociais (APA, 2013; Marlatt et al., 1988; Miller & Rollnick, 2012).

Para assegurar a robustez metodológica e a transparência do processo de revisão, foram observadas as recomendações estabelecidas pela declaração PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses), na medida em que aplicável a uma revisão clínica narrativa (Moher et al., 2009).

 

  1. DISCUSSÃO

A presente revisão clínica propôs-se a sintetizar o corpo de conhecimento atual sobre o tratamento farmacológico da dependência química, abarcando desde a compreensão dos substratos neurobiológicos do vício até as estratégias de intervenção farmacológica empregadas no manejo da abstinência e na prevenção da recaída. A análise da literatura consultada corrobora a noção de que a dependência química constitui uma condição neurobiológica crônica e recorrente, na qual a farmacoterapia se configura como um componente terapêutico fundamental, cuja eficácia é otimizada quando integrada a uma abordagem de tratamento individualizada e multimodal (Volkow et al., 2016; Koob & Volkow, 2016; APA, 2013).

Os achados desta revisão reiteram o papel proeminente dos sistemas de neurotransmissores, em particular o sistema dopaminérgico mesolímbico, na fisiopatologia da dependência (Koob & Volkow, 2016; Nestler, 2005; Hyman et al., 2006). A exposição crônica a substâncias psicoativas indutoras de dependência precipita adaptações neuroplásticas duradouras que alteram a função de circuitos neurais envolvidos na recompensa, no controle do impulso e na tomada de decisão, perpetuando o comportamento de busca de drogas e conferindo vulnerabilidade à recaída mesmo após longos períodos de abstinência (Hyman et al., 2006; Volkow et al., 2016; Nestler, 2005). Essa compreensão dos mecanismos neurobiológicos subjacentes oferece a base racional para o desenvolvimento e a aplicação de intervenções farmacológicas que visam modular a atividade desses sistemas, buscando restabelecer o equilíbrio neuroquímico e mitigar tanto os sintomas agudos da abstinência quanto o desejo persistente pela substância (Lüscher & Malenka, 2011; Koob & Volkow, 2016; Di Chiara et al., 1999).

No que concerne ao manejo da síndrome de abstinência, a revisão salienta a eficácia das intervenções farmacológicas em proporcionar alívio sintomático, reduzir o desconforto do paciente e prevenir complicações médicas de potencial gravidade (Gowing et al., 2016; Sullivan et al., 2016; Johnson et al., 2010). O emprego de benzodiazepínicos para o tratamento da abstinência alcoólica, por exemplo, é amplamente suportado pela evidência científica, dada sua capacidade de atenuar a hiperexcitabilidade do sistema nervoso central e reduzir o risco de convulsões e delirium tremens (Sullivan et al., 2016; APA, 2013; Gowing et al., 2016). Similarmente, a terapia de reposição agonista ou agonista parcial com metadona ou buprenorfina constitui a abordagem farmacológica padrão-ouro para o tratamento da dependência de opioides, demonstrando robusta eficácia na redução da síndrome de abstinência, na diminuição da mortalidade e na promoção da retenção no tratamento a longo prazo (Fiellin et al., 2014; Kampman et al., 2016; Gowing et al., 2016).

Adicionalmente ao manejo da fase aguda de abstinência, a farmacoterapia desempenha um papel preventivo crucial na manutenção da abstinência e na redução do risco de recaída (Anton et al., 2006; O’Brien, 2008; Sinclair et al., 2009). Fármacos como a naltrexona, um antagonista opioide de longa ação, são utilizados para reduzir a fissura e bloquear os efeitos eufóricos do uso subsequente de opioides e, em alguns casos, etanol (Sinclair et al., 2009; Anton et al., 2006; O’Brien, 2008). As terapias de reposição de nicotina (TRNs) representam uma estratégia farmacológica comprovada para auxiliar indivíduos na cessação do tabagismo, aliviando os sintomas da abstinência nicotínica e reduzindo o impulso ao uso (Stead et al., 2012; Hartmann-Boyce et al., 2018; Anton et al., 2006). A efetividade destas estratégias farmacológicas ressalta a natureza crônica da dependência química e a necessidade, em muitos casos, de tratamento de manutenção contínuo (APA, 2013; O’Brien, 2008; Volkow et al., 2016).

Não obstante os avanços no arsenal farmacológico para o tratamento da dependência química, a prática clínica enfrenta desafios significativos. A elevada prevalência de transtornos psiquiátricos comórbidos, como depressão maior, transtornos de ansiedade, transtorno bipolar e transtorno de estresse pós-traumático, em populações com transtornos por uso de substâncias, impõe a necessidade de uma avaliação diagnóstica minuciosa e um plano terapêutico integrado que aborde simultaneamente a dependência e as comorbidades psiquiátricas, muitas vezes requerendo o uso concomitante de psicofármacos (Kessler et al., 1997; Brady et al., 1997; SAMHSA, 2016). Adicionalmente, a variabilidade fenotípica da dependência química e as características específicas de determinadas populações, incluindo adolescentes, mulheres em idade fértil ou gestantes, indivíduos com comorbidades médicas complexas e populações forenses, exigem a customização das abordagens farmacológicas, considerando as particularidades farmacocinéticas, farmacodinâmicas e os perfis de segurança dos fármacos em cada grupo (SAMHSA, 2016; APA, 2013; Kessler et al., 1997). A constante atualização profissional e a aplicação de práticas baseadas em evidências são essenciais para otimizar os desfechos terapêuticos nessas populações heterogêneas (APA, 2013; O’Brien, 2008; SAMHSA, 2016).

A imperatividade da integração entre as modalidades terapêuticas farmacológicas e psicossociais emerge como um tema central e recorrente nesta revisão (APA, 2013; Volkow et al., 2016; O’Brien, 2008). A farmacoterapia, isoladamente, raramente é suficiente para o manejo da complexidade da dependência química, que abrange dimensões biológicas, psicológicas, sociais e ambientais (Leshner, 1997; Koob, 2015; Marlatt et al., 1988). A combinação estratégica de agentes farmacológicos com terapias comportamentais e psicossociais, tais como terapia cognitivo-comportamental (TCC), terapia motivacional, manejo de contingências e terapia de grupo, oferece uma abordagem terapêutica mais robusta e abrangente, capaz de abordar tanto os substratos neurobiológicos da dependência quanto os padrões de pensamento, comportamento e relacionamento interpessoal que sustentam o uso de substâncias (Marlatt et al., 1988; Miller & Rollnick, 2012; APA, 2013).

As limitações inerentes a esta revisão narrativa devem ser consideradas na interpretação de seus achados. A síntese narrativa dos dados, embora propicie uma visão geral abrangente e contextualizada das evidências, não oferece a precisão quantitativa e a capacidade de inferência estatística de uma metanálise. Outrossim, a restrição da busca a publicações nos idiomas português e inglês pode ter implicado na exclusão de estudos relevantes publicados em outras línguas, potencialmente introduzindo um viés de seleção (Moher et al., 2009).

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, a presente revisão clínica reitera a posição da farmacoterapia como um componente fundamental no espectro de tratamentos disponíveis para a dependência química (Volkow et al., 2016; Koob & Volkow, 2016; APA, 2013). Não obstante, a natureza multifacetada e a heterogeneidade fenotípica desta condição impõem a necessidade de uma abordagem terapêutica que transcenda a mera prescrição de agentes farmacológicos (Leshner, 1997; APA, 2013; O’Brien, 2008). É imperativo que os profissionais de saúde que atuam neste campo adotem uma perspectiva integrativa e multidisciplinar, combinando judiciosamente as intervenções farmacológicas com as abordagens psicossociais e comportamentais, em um plano de tratamento individualizado e dinâmico, adaptado às singularidades clínicas, psicológicas e contextuais de cada paciente (Marlatt et al., 1988; Miller & Rollnick, 2012; APA, 2013).

O futuro do tratamento da dependência química reside na progressiva personalização da intervenção terapêutica, considerando não apenas a substância de abuso primária, mas também a complexa interação de fatores genéticos, neurobiológicos, psicológicos, sociais e ambientais que conferem vulnerabilidade e influenciam o curso da doença (Nestler, 2005; Goldstein & Volkow, 2002; Hyman et al., 2006). A pesquisa translacional, que se dedica a transpor as descobertas da ciência básica para aplicações clínicas práticas, desempenha um papel crucial no desenvolvimento de novas classes de fármacos, na otimização dos regimes terapêuticos existentes e na identificação de biomarcadores preditivos de resposta ao tratamento e de risco de recaída (Hyman et al., 2006; Volkow et al., 2016; Nestler, 2005).

Adicionalmente, faz-se fundamental que os sistemas de saúde e os profissionais que neles atuam estejam adequadamente preparados para atender às necessidades específicas de populações consideradas vulneráveis, tais como adolescentes, mulheres gestantes ou lactantes, e indivíduos com comorbidades psiquiátricas ou clínicas severas (SAMHSA, 2016; APA, 2013; Kessler et al., 1997). O manejo da dependência química nesses grupos demanda uma abordagem colaborativa e coordenada entre diferentes especialidades médicas, serviços de saúde mental e assistência social (Kessler et al., 1997; Brady et al., 1997; SAMHSA, 2016). A capacitação contínua dos profissionais, a disseminação do conhecimento baseado em evidências e a implementação de políticas públicas que garantam o acesso universal a tratamentos eficazes e de qualidade constituem pilares essenciais para o enfrentamento do ônus social e de saúde pública imposto pela dependência química (Marlatt et al., 1988; Miller & Rollnick, 2012; Volkow et al., 2016).

Reitera-se que, embora a dependência química seja uma condição crônica e frequentemente associada a recaídas, ela é tratável e a recuperação é um desfecho alcançável com intervenção adequada (Leshner, 1997; Volkow et al., 2016; APA, 2013). A presente revisão clínica visa contribuir para a prática baseada em evidências dos profissionais de saúde, oferecendo uma perspectiva atualizada e abrangente sobre as opções farmacológicas disponíveis e delineando os desafios e as promissoras perspectivas futuras no campo do tratamento da dependência química.

 

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